quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Os nossos hipocrates da medicina

Como em todas as matérias em que surpreendemos o justo a conviver amenamente com o injusto, é previsível que a indignação - mesmo quando legítima - se empreste à demagogia. Assim aconteceu com a história das remunerações dos gestores públicos (e privados) e assim sucede com a notícia dos incentivos financeiros pagos aos médicos que fazem transplantes.
Segundo tem sido noticiado, o Estado português (vale a pena sublinhar português) pagou, em 2007, € 23 milhões em incentivos, extra-vencimento, àqueles técnicos de transplantes. Alguns destes ajuramentados de Hipócrates, como Eduardo Barroso (presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplatação - ASST), chegaram a receber € 30.000 por mês, de prémio.
Não seria justo, admito - até por solidariedade clubística -, concentrar críticas e disparar argumentos sobre um só implicado - mesmo que a conduta deste ilustre sportinguista, até por força das funções públicas que exerce, justifique alguns disparos mortais (por exemplo: o dr. Barroso confirma que opera cada vez menos e que fica felicíssimo quando os seus discípulos dispensam a sua presença no bloco operatório, contudo confirma só ter aceitado presidir à ASST se não fosse obrigado a abdicar do seu quinhão de incentivos - o que, a seu ver, será da mais elementar justiça, uma vez que exerce em exclusividade).
Como contribuinte é-me absolutamente indiferente que o dr. Barroso trabalhe exclusiva e, certamente, abnegademente no sector público. Não pôr a render no sector privado as suas competências clínicas foi uma opção - a que não terá sido alheio o facto de ainda ser nos hospitais públicos que se fazem transplantes - da sua inteira responsabilidade, tal como ser sócio do Sporting e não do FêCêPê. O que já me não é indiferente, como contribuinte e cidadão, é que profissionais técnica e estatutariamente independentes se arroguem credores privilegiados do Estado - e da comunidade - por uma opção de carreira que, de forma consciente e, por vezes, até negociada, entenderam ser aquela que melhor servia os seus objectivos profissionais e, legitimamente, os seus interesses pessoais. Se a lógica egoística subjacente a esta argumentação não dignifica a classe médica, a irracionalidade e a iniquidade deste esquema de incentivos governamentais (veja-se, a título de exemplo, que as unidades (recordistas) de transplantação de Coimbra, lideradas pelo Prof. Manuel Antunes, nunca usufruiram de qualquer pacote de incentivos) é, mais um exemplo, de absoluta incompetência governativa.
Mas a ineptidão é já um traço definidor dos nossos governos dos últimos 15 anos. Num país onde se espera 2 anos por uma cirurgia oftalmológica e onde o serviço de emergência médica não cobre todo o território nacional - dependendo da sempre voluntariosa mas, tantas vezes, insuficiente colaboração dos bombeiros -, que a grande maioria dos médicos, entre simpósios em Pipa e congressos no Maranhão, vão fazendo pela vidinha, não é já motivo de surpresa. O que me preocupa, porque me suscita prognósticos reservados, é a saúde da memória do velho Hipócrates, que para muitos clínicos deste país parece não ser já mais do que um busto decorativo esquecido numa qualquer prateleira do consultório, entre souvenirs e recuerdos.


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