quinta-feira, 13 de março de 2008

O animal em nós

Estudos científicos recentes demonstram que muitas das nossas acções morais são ainda reminiscências comportamentais daqueles nossos antepassados que os criacionistas teimam em ignorar. Por exemplo: a perturbadora empatia que sentimos para com os pais da Maddie ou do Rui Pedro é muito semelhante à reacção de um chimpazé quando confrontado com o choro da sua tratadora: o choro, ainda que simulado, leva-o a representar a existência de um ataque à mão que o alimenta, o que lhe sugere uma ameaça à sua própria sobrevivência.
Isto mesmo constatou uma primatóloga holandesa quando, desanimada com os sucessivos insucessos para “educar” o chimpazé que adoptara, verificou, quase por acaso, que fingindo chorar este imediatamente descia do telhado de onde, até então, nada o convencera a descer, para, correndo furiosamente em círculos defensivos à sua volta, procurar o atacante imaginário.
Noutro sentido, a mesma conclusão se pode retirar quando nos confrontamos com determinadas situações limite, por exemplo, a hipótese clássica do bote salva-vidas que está prestes a naufragar, se não deitarmos borda fora um dos seus ocupantes moribundos; ou o dilema do cirurgião perante o sinistrado, que é também o violador da filha.
O nosso comportamento moral nestas situações, conforme vêm demonstrando diversos estudos psico-sociológicos, é, na sua essência, de auto-preservação, seja da nossa própria sobrevivência, seja a da nossa “tribo”, enquanto todo protector.
Porém, por muito interessantes que sejam os resultados – e são-no, de facto, não só pelo que revelam da nossa espécie, mas também pelo que sobre ela ajudam a explicar -, todos, de uma forma ou de outra, concordaremos que trazem pouco de novidade. Que nos identificamos até à morbidez com “os casos Maddie”, é um facto mais do que escalpelizado: basta ter (sobre) vivido, nos últimos tempos, onde quer que se tivesse acesso à imprensa (lembram-se da indignação que Cathy Maccan suscitou por não chorar em público ?). E que excluímos, discriminamos, hostilizamos e marginalizamos, quase sempre, por um sentimento (ou recalcamento) de auto-preservação da “classe”, do “grupo” ou do “sistema”, é uma realidade incontestável (e inconfessável), que já vamos dando por adquirida – basta divergir no PCP (ou, mais recentemente, no PSD), gritarmos vivas ao Sporting (ou a quem quer seja) nas Antas ou frequentarmos o metro de Lisboa em hora de ponta para o sabermos. Mas a que se deve então a prosa? Porque se é curiosíssimo reconhecer (ainda) no nosso quotidiano práticas comportamentais primitivas, é ainda mais delicioso verificarmos as formas (e fórmulas) que séculos e séculos de civilização vão criando, tantas vezes ingloriamente, para apagar (dominar e instrumentalizar) esses vestígios “vergonhosos” do nosso comportamento. Não que, com isto, pretenda fazer a apologia do “regresso à caverna” (ainda que muitos de nós pareçam nunca de lá terem saído - para desgraça da espécie) – abandonei todos os devaneios naturalísiticos na adolescência, depois de uma (única) experiência de campismo -, mas sou dos que pensam termos tudo a ganhar em não renegarmos a nossa condição animal, como se esta fosse uma “deficiência” degenerativa somente diagnosticável a determinados (e já catalogados) espécimes. Em suma: se os avanços científicos (já) me convenceram a controlar a minha condição de carnívero, os progressos e conquistas civilizacionais dificilmente vencerão a minha indomesticável propensão para a chanfana. - Mas calma, oh! xamãs do vegetarianismo: assim como não salivo perante um suflê de rabanetes, também confesso que me repugna carne mal passada. E o hipocondrismo dos tempos que, se me fez celebrar, com a mal disfarçada satisfação dos oprimidos vencedores, a Lei do Tabaco, jamais me levou a invocar um qualquer antepassado da idade da pedra, quando ocasionalmente sujeito aos fumos e aos aromas mais requintados expelidos pelos mais diversos fumantes desta era milenar.

Sem comentários: